‘Foram 4 tentativas que me custaram o carro que eu tinha na garagem, além de muita angústia’

Romantizado pela indústria como símbolo de autonomia com promessa de final feliz, o congelamento de óvulos pode gerar desgastes emocionais, físicos e financeiros para as mulheres, além de ter resultados incertos. Mesmo assim, a prática triplicou no Brasil nos últimos anos. A quem interessa comercializar o adiamento da maternidade?

Por que o congelamento de óvulos não é sempre promessa de final feliz? Mulheres dão seus relatos

Por que o congelamento de óvulos não é sempre promessa de final feliz? Mulheres dão seus relatos — Foto: Mayra Martins

“Já aviso que posso chorar a qualquer momento”, diz Ana Fisch, 36, antes de dividir a experiência de congelamento de óvulos feita há dois anos. Embora tenha conseguido congelar, o processo rendeu dolorosas frustrações para a paulistana.

Na época, conversava despretensiosamente com o namorado sobre a possibilidade de ter filhos, até que sua ginecologista a alertou: caso não tivesse planos de engravidar naturalmente naquele momento, o congelamento poderia ser uma boa opção. Se você também é uma mulher acima dos 30, de classe média alta, inserida em um centro urbano, é muito provável que tenha passado por essa mesma encruzilhada. Congelar ou não congelar, eis a questão.

“Minha médica falava: ‘Quando você fizer 35, a gente pensa se faz sentido congelar, pois a partir dessa idade a qualidade dos óvulos começa a cair, assim como as chances de sucesso de engravidar’”, conta Fisch. “ Se até essa idade você não tiver perspectiva de maternidade e ainda quiser ser mãe, os médicos recomendam congelar os óvulos como uma ferramenta para postergar a decisão.”

O procedimento, no entanto, é inacessível à maioria das brasileiras. Uma única tentativa, e considerando apenas a primeira fase, que inclui uma bateria de hormônios e o congelamento em si, custa em média R$ 18 mil – e não há nenhuma garantia de que o processo vá evoluir para uma gravidez. Ainda assim, 99.112 embriões foram congelados no Brasil em 2019, segundo os dados mais recentes da Anvisa – número que triplicou desde 2012. Paralelamente, crescem também as ponderações em torno do procedimento, muitas vezes vendido pela indústria como um “seguro-maternidade”.

“Não existe qualquer garantia de que os óvulos congelados resultarão em uma gravidez, assim como não há qualquer garantia de engravidar de forma natural. As mulheres precisam ser bem informadas sobre isso”, diz a ginecologista e obstetra Lucia Kharmandayan. “Quando comecei a trabalhar com fertilidade, parecia que todo mundo que fizesse FIV [fertilização in vitro] teria filho. Os números foram saindo e deram uma esclarecida na situação. Com a vitrificação aconteceu o mesmo. Primeiro veio o movimento ‘congela que resolve’. Agora está vindo uma resposta a isso. O pêndulo está voltando ao lugar certo.”

Sócia de uma consultoria de sustentabilidade, Fisch sabia das baixas chances de êxito, ainda assim quis investir em uma “possibilidade a mais”. Um pacote incluindo dois ciclos de estímulo ovariano e coleta, além de todos os hormônios e medicação necessários, custou R$ 30 mil. Fora isso, paga uma taxa semestral de R$ 600 para manter os óvulos congelados. Branca, com ensino superior e carreira estabelecida, ela faz parte de um padrão de mulheres que aderem ao pro cedimento em busca de tempo para decidir se querem ou não ser mães.

Como primeiro passo, fez o exame antimulleriano, usado para medir a quantidade de óvulos. O resultado foi pessimista: a reserva ovariana era equivalente à de uma mulher dez anos mais velha, já no fim do período fértil. Ainda que avisada pela ginecologista de que o exame não era tão preciso e não deveria ser interpretado à risca, sentiu-se devastada. “Fiquei triste. Já tinha pensado em não querer ter filhos, mas não de não poder. Senti medo e frustração. E aí entraram várias questões de um machismo estrutural, que racionalmente sempre neguei, como a ideia de que meu corpo estava falhando ou de que se não pudesse ser mãe não seria completa”, diz. Ao consultar um especialista em fertilidade, foi aconselhada então a congelar os óvulos.

Promessas incertas

Rafaela Gomes Ferrari, 46, vendeu o carro para conseguir pagar os R$ 30 mil gastos nas duas coletas feitas para conseguir uma reserva suficiente de óvulos, além do valor anual de R$ 1.200 para mantê-los congelados. Tinha 42 anos na época – idade considerada tardia e, portanto, com menor probabilidade de sucesso. “ O médico disse que eu estava atrasada, que se faz isso até os 30. O tempo biológico da mulher está lá nos anos 1800. Não acompanhou a vida feminina atual. Só fui pensar na possibilidade de congelar depois dos 40.”

Pós-doutoranda em biologia molecular na Universidade Federal do Rio de Janeiro ( U F RJ), ela vive de bolsa e não sabe quando terá condições favoráveis para tentar engravidar, mas se mantém otimista: “Acho que daqui a uns dois anos, se nada mudar, terei um filho seja como for, com ou sem namorado, com ou sem dinheiro. Todos dizem que se dá um jeito, no fim das contas”.

Já a jornalista Marina Sartori, 37, chegou a pesquisar o assunto, mas descartou a ideia por considerar os custos altos demais – financeiros, físicos e emocionais. Ela e o companheiro estavam com dificuldade para engravidar e, enquanto estudava o tema na internet, deparou-se com infindáveis notícias sobre congelamento.

“Parece haver uma agenda muito forte da indústria da fertilidade para que chegue até nós a informação de que o congelamento é a solução para nosso problema”, diz. “Como sou crítica com tudo relacionado à saúde da mulher – tema no qual fica evidente a ligação do capitalismo e da publicidade com o patriarcado –, fiquei com uma pulga atrás da orelha. Tive contato com especialistas e pessoas que estão passando por isso e me contaram como tudo pode ser complicado. Eu e meu companheiro pensamos que todo esse esforço por uma possibilidade remota de gravidez poderia acabar conosco emocionalmente. Existem várias maneiras de ter uma família e optamos pela adoção.”

Uma das especialistas que Sartori consultou foi a ginecologista Halana Faria. A médica diz que o congelamento é benéfico sobretudo para pessoas em tratamentos para câncer, que causam dano aos ovários. No entanto, a técnica logo passou a ser oferecida como uma garantia de maternidade sem que fosse preciso lidar com as contingências da idade. Tal promessa, porém, é problemática por diversas razões.

“Primeiramente, não tem havido informação adequada sobre os riscos do procedimento, como hiperestimulação ovariana com crescimento excessivo do ovário, dor e hemorragia. Depois, a probabilidade de um óvulo congelado vir a ser um bebê também não é adequadamente informada: a chance é de 2% a 12%. Além disso, há a ideia de que, feito o congelamento, haverá tempo indeterminado para seu uso, mas não são explicados os riscos de uma gravidez em idade avançada, como diabetes, doenças hipertensivas e pré-eclampsia”, explica.

A publicitária Edna Correa conseguiu congelar oito óvulos aos 37. Insuficientes para quando, aos 40, tentou engravidar. “Foram quatro tentativas de FIV e que me custaram o carro que eu tinha na garagem, além de muita angústia. Depois de conversar com o meu companheiro, decidimos desistir de tentar engravidar com os óvulos congelados. Aos 42, engravidei naturalmente e, dizem os médicos que me atenderam, ‘por um milagre’.”

No Reino Unido, dados de 2016 fornecidos pela Autoridade de Embriologia e Fertilização Humana – um órgão governamental – mostram que, dos óvulos que foram descongelados, 15% foram fertilizados. Desses, 13% resultaram em gravidez – um total de 22 mulheres grávidas em 1.204 óvulos descongelados. Ainda segundo o órgão britânico, a idade em que a mulher congela seus óvulos também influencia seu sucesso. Com menos de 35 anos, têm 18% de possibilidade de ter um bebê quando cinco óvulos são congelados, mas esse percentual cai para 7% se a mulher tiver mais de 35 no momento do congelamento.

Outro ponto é a quantidade de óvulos congelados. Por isso, a recomendação é passar por diversos ciclos de congelamento (o número de óvulos retirados em cada ciclo varia entre as pacientes; sua média pode ir de 15 para mulheres com menos de 35 anos até 6 para as com mais de 42). Claro que isso aumenta os custos.

Negligência

Em um movimento controverso, empresas têm oferecido às funcionárias pagar uma parte ou a íntegra do procedimento de vitrificação. Fisch, por exemplo, considera esse um benefício para quem deseja ser mãe sem prejudicar a carreira e diz que adoraria tê-lo recebido.

Já Sartori considera o assunto espinhoso. “ Super interessante, mas, quando vemos que as empresas estão vendendo essa ‘solução’ enquanto negligenciam questões importantes para as mulheres, parece ser mais uma tentativa de fazer com que não tenhamos filhos”, diz a jornalista. “Temos problemas de licença-maternidade – quatro meses é pouco. E as empresas não dão apoio a mães solo que precisam se ausentar para cuidar dos filhos, tampouco permitem o trabalho remoto para as que desejam amamentar depois da licença. Sem falar na licença-paternidade, que praticamente não existe e sobrecarrega mães.”