Violenta ilusão

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O Campeonato Brasileiro de 2023 trouxe consigo episódios de redenção, ignomínia e surpresa. Como sabemos, o grande protagonista desse legítimo romance policial foi o Botafogo, clube que traz em seu uniforme as cores branca e preta, e, no seu âmago, a luz e a sombra de um clube forjado em extasiantes peregrinações entre o céu e o inferno.

Estarrecendo estádios, bares e lares brasileiros com exibições de um futebol sólido e vencedor, no primeiro turno da competição o Botafogo fez uma campanha digna de recorde, amealhando 47 pontos e dando a impressão de que a taça que não vinha desde 1995 finalmente retornaria às cristaleiras do clube. Entre os construtores dos castelos da torcida carioca estavam o goleiro Lucas Perri, um tremendo escolho sob as traves, rechaçando ataques contrários com valentia; a dupla de zaga formada por Victor Cuesta e Adryelson, uma mescla de técnica e ferocidade no domínio da pelota; na meia cancha, nomes como Tchê Tchê, Marlon Freitas e Carlos Eduardo, tecendo tramas de fino teor, capazes de impulsionar os atacantes Tiquinho Soares e Victor Sá na produção de gols em quantidades industriais.

Teria sido a mão do técnico português Luís Castro a responsável em amalgamar o onze alvinegro rumo às vitórias avassalantes que chegaram a deixar o time com 13 pontos de vantagem sobre os seus perseguidores na tabela?  O fato é que após a saída de Castro uma espécie de apatia tomou conta do elenco. É verdade que o seu substituto Claudio Caçapa logrou manter o time em alta nas poucas partidas em que esteve no comando. Entretanto, com Bruno Lage, Lúcio Flávio e Tiago Nunes na casamata, o sonho do título foi aos poucos se desvanecendo, até assumir a aparência de um tormento.

Como se fosse uma parábola bíblica, uma fábula de Esopo ou um filme com um alucinante “plot twist” em seu final, a impressionante campanha do Botafogo no primeiro turno, feita de vitórias insofismáveis contra os medalhões do futebol brasileiro, deu lugar a fiascos sistemáticos sobre a relva macia do estádio Nilton Santos. Como esquecer as viradas sofridas contra Palmeiras e Grêmio, quando o time ainda dependia apenas de si mesmo para conquistar o título? Para cúmulo, o Botafogo passou a perder pontos contra times de menor expressão, definitivamente dando adeus à disputa.

Foram momentos de assombro, em que o país e o mundo testemunharam o fim de uma espécie de encanto e a Cinderela dos gramados voltou repentinamente à sua condição triste e verdadeira. Nos gabinetes frios do poder, o magnata John Textor, dono do Botafogo, não podia crer em seus olhos. A bruma distante da filosofia e da superstição de históricas figuras alvinegras como Neném Prancha e Carlito Rocha parecia pairar sobre ele, cobrindo a sede de General Severiano como um manto de saudade e terror.

À torcida, por sua vez, coube absorver o impacto brutal da perda de um título que parecia tão vivo, nítido e colorido. O grito de campeão, ao permanecer preso às gargantas, tornou-se um fardo a mais para as hordas de aficionados que buscam romper as correntes do ostracismo no qual o clube padece há décadas. O choro da ilusão perdida, ao contrário da alegria coletiva das vitórias, foi purgado em silêncio, solitário como a estrela da camisa sobre o peito ferido.