Os bares de uma cidade são como a sua identidade. Assim como as impressões digitais de uma pessoa, é impossível reproduzi-los em outro lugar. Bancos, lojas e shopping centers são iguais. Na capital ou no interior, na serra ou na praia, são lugares frios, onde o contato humano vive oculto e padronizado em razão do vil metal.
Pelos bares da Caxias do Sul, desfilam os personagens mais díspares e curiosos, dignos de uma obra de ficção toda particular. A característica bodega caxiense possui, invariavelmente, um balcão com cadeiras giratórias que, além de acomodar o cliente, serve para armazenar balas, chocolates e guloseimas diversas. O balcão é o núcleo nervoso do bar, a linha quase invisível que separa o bodegueiro do transeunte esporádico ou do freguês de caderno. As mesas espalhadas ao redor são usadas para os velhos jogarem cartas, passatempo muito apreciado pelos italianos que ergueram a cidade. O trago na parede é outro quesito obrigatório, as garrafas dispostas como um enfeite nas prateleiras espelhadas.
Muitas vezes busquei no ambiente do bar um refúgio. Gostava de sentir o afã das ruas, as pessoas passando apressadas, cada qual com uma preocupação e um rosto diferente, enquanto eu, sentado em uma cadeira velha, tentava esquecer um pouco de mim mesmo. Outra atração irresistível desse tipo de lugar é o futebol na televisão. Ainda mais quando o jogo passa em algum canal a cabo, luxo indisponível no sofá da minha sala.
Um belo dia, eu estava em uma das minhas bodegas favoritas assistindo às emoções do futebol. Lembro-me nitidamente, era um sábado de inverno, final de tarde. Após uma relativa agitação no interior do estabelecimento, com o entra e sai de figuras conhecidas a travar breves conversas em meio a goles de bebidas, estava tudo calmo. No meu lado, apenas um sujeito grisalho, de olhar aceso e nariz vermelho, protegido por um blazer de veludo cotelê marrom.
Atrás do balcão, o bodegueiro ocupava-se lavando copos. Ato contínuo, um comentário sobre o jogo cortou o silêncio. O senhor à minha esquerda e eu começamos a tecer uma prosa lenta e vigorosa ao redor do assunto, como se o papo fosse um jogo de xadrez, estudando cada lance, cada palavra a ser pronunciada.
A essa altura, o foco da conversa havia rompido completamente a barreira do jogo na TV. Falávamos agora de grandes times do passado e, quando eu arrisquei uma escalação do Flamengo da década de 1940, com Zizinho, Pirilo e Perácio, o sujeito abriu um largo sorriso. Obviamente tratava-se de um ex-atleta. Como um arqueólogo que fareja um tesouro próximo, indaguei pelo nome do distinto cavalheiro. O impacto da resposta foi tremendo. Meu interlocutor era o grande atacante do Juventude, Lory Tonietto.
Foi pelas mãos de Alfredo Jaconi, um torcedor abnegado que fazia de tudo um pouco para ajudar o Juventude, que Lory começou a sua bonita história no clube. Alfredinho incentivou o garoto desde as categorias de base até a estreia de Lory entre os profissionais, em 1948. Nesse time despontavam figuras lendárias como os atacantes Canelinha, Homero e Margarida. Moço de Flores da Cunha, Margarida, ou melhor, Nelson Cruz, era um verdadeiro tormento para as defesas contrárias. Baixinho, escorregadio, tinha um notável faro de gol, além de atuar pelo Juventude sem receber um tostão por isso.
A torcida amava Margarida e Lory foi lentamente aprendendo as artimanhas do futebol até se tornar ele próprio um ídolo dentro do clube esmeraldino. Jogava em várias posições do ataque, era brigador e inteligente, um verdadeiro craque. Nos clássicos da cidade contra o Flamengo, Lory marcava sempre, ostentando até hoje a invejável láurea de maior goleador da história do confronto.
Quando acabou o jogo, o proprietário do bar gentilmente nos conduziu até a porta. Lá fora, um vento gelado soprava por entre as árvores e o breu da noite fazia-se cada vez mais intenso. Estacionado rente à calçada, meu carro recebia sobre a lataria triste a nesga de luz amarela e tênue de um poste. Os três refletiram por um instante, até que o bodegueiro sugeriu que eu desse uma carona para o veterano atleta.
Despedimo-nos. Enquanto o Lory me ensinava o caminho, eu guiava o carro lentamente sobre o asfalto. Todo o cuidado era pouco para preservar a integridade do passageiro ilustre. Durante as poucas quadras do trajeto, trocamos mais algumas palavras sem importância, até atingirmos o nosso destino. O Lory agradeceu e, sem maiores delongas, desembarcou do carro rumo ao conforto do seu lar.
Missão cumprida. Passando pelo reflexo do semáforo sobre a rua úmida, afastei-me devagar, até desaparecer totalmente dentro da noite escura.
*crônica publicada originalmente no livro “Tetraedro” (2012).