Créditos Mateus Frazão - Divulgação
Créditos Mateus Frazão - Divulgação

transformação da realidade, muitas vezes, começa com um roteiro escrito a quatro mãos em uma sala de aula. É o que o projeto “Cinema Conquista” demonstra, com oficinas na Zona Sul de Caxias do Sul que resultaram na reinvenção da realidade para muitos jovens caxienses. Ao longo de seis meses, os jovens de 12 a 16 anos que frequentam o projeto social Semente Conquista, deixaram de ser apenas consumidores de telas para se tornarem produtores, diretores e roteiristas de seu próprio filme, “Operação Festa Surpresa”.

Para quem está, pela primeira vez, construindo uma narrativa atrás das lentes, o processo é um mergulho em um novo estado de expressão:

“Gravar para mim é algo muito novo. A gente fez todo o roteiro e, depois, para pensar como cada cena vai ser, quantas vezes precisa fazer até chegar no ponto… É muito desafiador, mas vale a pena. Estou adorando a experiência”, conta Natali Maciel, 14 anos, corroteirista e codiretora do curta.

A experiência que Natali descreve – o processo desafiador de passar da ideia à cena final – tem um valor psicopedagógico imenso, que vai muito além da formação técnica.

Na sociedade da imagem e da saturação de telas, a tecnologia disponível pode deixar de ser um mero recurso de consumo e se integrar ao ensino, como um meio para a construção do senso de identidade e autoria. É através dessas tecnologias que o jovem pode conquistar novas perspectivas, desenvolver o senso crítico e se constituir plenamente como um cidadão ativo, capaz de mudar a realidade.

Letramento Audiovisual – Por que?

Não é uma ideia nova. A UNESCO defende (há algumas décadas) a linguagem audiovisual e cinematográfica como um componente central para a definição da Educação Midiática (Media Literacy). Dados os recursos exigidos pra produção audiovisual, capacitar um estudante para pensar o mundo através de seu próprio pensamento e leitura social é garantir que ele consiga decodificar e analisar, mas, sobretudo, que ele consiga exercer o controle sobre as narrativas que o influenciam.  

No Brasil, a Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE) tem defendido que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reconheça o Cinema e Audiovisual como um eixo específico no componente curricular de Artes. O argumento é simples: o cinema, que é obrigatório nas escolas pela Lei 13006/14, oferece uma singularidade pedagógica, permitindo a estudantes e professores “olhar para a realidade para descobri-la e inventá-la“. A produção de conhecimento também passa por olhar para o seu entorno e refletir sobre o que se vê.

Reinventando a realidade

A produção audiovisual é, antes de tudo, uma ferramenta de autoexpressão, com benefícios diretos para a saúde mental e o desenvolvimento cognitivo. Isso já é sabido e superado. O que também é notório, é que a prática regular de atividades artísticas, como o cinema, emerge como um fator protetor, ajudando a reduzir o stress, a ansiedade e os sintomas de depressão em adolescentes. Isso se dá porque o ato criativo promove a autorreflexão e oferece uma via positiva para lidar com desafios emocionais, gerando “superação”, “expressividade” e “discernimento”.  

Talvez o ponto que falte discutir seja este: mesmo com um mercado saturado e cada vez mais predatório, a linguagem cinematográfica está mais acessível do que em qualquer outro ponto da história. Mesmo com um celular simples, é possível criar e refletir sobre o que se vê, ouve e sente na comunidade. Filmar, escrever e montar são os primeiros passos de um quebra-cabeça multidisciplinar. Um processo que começa com o simples ato de perceber como as narrativas se organizam ao nosso redor.

Essa conexão entre o cotidiano e a arte foi observada na prática por Everton Severo, responsável pela oficina de Som do Projeto Conquista. Ele relata que o objetivo foi cumprido justamente porque os alunos “descobriram um novo mundo” que, na verdade, já dialogava com o deles. Severo percebeu que muitos jovens já tinham fluência digital para criar músicas em aplicativos de celular: uma habilidade que nem eles esperavam encontrar. O grande mérito do projeto, segundo ele, foi mostrar que essas competências existentes poderiam ser aplicadas profissionalmente, em outras áreas. Essa validação foi “muito enriquecedora” e serviu como a ponte que conectou a criatividade informal dos alunos à linguagem estruturada do audiovisual.

O aluno Nathanael da Silva Spido, 15 anos, que participou ativamente da oficina de áudio, descreve essa descoberta:

“A gente foi nos estúdio, viu como é que mexe, como é que pode procurar um som que nem a gente gravou e colocar dentro do filme”.

A mudança na percepção foi imediata:

“Até quando eu vou ver filmes agora, eu fico prestando atenção pra ver, tipo, ah, será que esse som foi gravado por eles mesmo ou foi pego da internet?”.

Para fazer um curta-metragem como “Operação Festa Surpresa”, os alunos precisaram sintetizar habilidades de alto nível. O processo de roteiro e direção exige que o jovem desenvolva a percepção do problema, observe o desafio (o tema, a cena, o enquadramento), crie um modelo mental e produza a solução em equipe. Isso estimula o trabalho em grupo e a comunicação, e, como bem avaliou o coordenador do projeto Semente Conquista, Rudimar Souza Camargo (DJ Hood), incentiva o protagonismo e a autonomia dos adolescentes. Ao dominar a linguagem cinematográfica, o jovem adquire controle sobre a forma de sua expressão, fortalecendo sua autoestima.  

Cinema em prática: o Diário Filmado

Para que a autoexpressão não se perca na fugacidade dos registros casuais que entopem os nossos dispositivos, várias práticas pedagógicas estruturadas são cruciais. Um que me parece ser cada vez mais necessário, especialmente na documentação da realidade, é o conceito de Diário Filmado (Film-Journal).

O diário pessoal é há muito tempo reconhecido como um instrumento didático e de formação. O Diário Filmado é sua evolução, uma prática autobiográfica profundamente ligada à memória e à imaginação. No diário filmado, a beleza pedagógica reside na edição e em um caos multimídia: a organização e a montagem dos registros diários permitem ao jovem construir uma trajetória de vida, manipulando a instância temporal para tecer uma narrativa reflexiva sobre o vivido.  

Ao se tornar o produtor do material , o estudante é desafiado a ir além da captura, transformando seu impulso de registro em um ato de curadoria e autoria ativa. Ele usa a primeira pessoa do singular para demarcar assertividade sobre seu gosto e determinação em relação ao conteúdo que consome e às narrativas que subscreve. Este processo prepara os jovens não apenas para desafios acadêmicos, mas também para os desafios da vida, pois os ensina a produzir “análises e resumos críticos” de suas próprias obras e das narrativas externas.  

O jovem que não se vê nas telas

O projeto Cinema Conquista, contemplado pelo edital da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), ilustra a importância do fomento cultural nessa jornada.  

Pesquisas indicam que 75% dos jovens consideram que os filmes os retratam de forma estereotipada, e quase metade dos adolescentes não se identifica com os filmes que assiste, apesar de desejarem ver personagens que vivenciam situações que gostariam de experimentar.  

Para grupos de jovens em periferias, especialmente, o audiovisual se torna um mecanismo de contrapoder. Coletivos independentes têm se organizado para produzir contranarrativas que desafiam os moldes dominantes da “Grande Mídia”. Ao mostrar intencionalmente os “tijolos sem rebocar” , esses filmes se tornam um manifesto visual pela autenticidade social.

E para jovens como Natali, iniciativas como essa podem representar não apenas a sua assinatura como codiretora de seu filme, mas a autora, editora e protagonista de sua própria história.

Serviço

Operação Festa Surpresa será exibido no dia 12 de novembro (quarta) às 10h, em sessão no GNC Cinemas para os estudantes participantes e as turmas da escola onde estudam, que convidam a comunidade à se juntar a esse momento especial de estreia.

O projeto Cinema Conquista foi contemplado pelo edital 230/2024 da Política Nacional Aldir Blanc, com financiamento da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul e realização do Ministério da Cultura – Governo Federal. As aulas tiveram condução dos profissionais Mateus Frazão, Gregory Debaco, Marcelo Casagrande, Maicon Damasceno e Everton Severo. Depois da estreia, o curta-metragem produzido será publicado na internet, podendo ser acessado pelo Instagram @cinemaconquista.