O que o pai do automóvel, o pioneiro na transmissão de energia elétrica em larga escala e o criador do soro antiofídico têm em comum? Todos registraram no Brasil alguns de seus inventos, entre a virada do século 19 para o 20, quando o país iniciava sua industrialização e já era líder mundial na produção de café.
As patentes de cientistas de renome internacional, como Henry Ford, Nikola Tesla e Vital Brazil, estão presentes entre os 3.200 documentos inéditos digitalizados desde 2021 pelo Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), aos quais a Folha teve acesso. O material também acaba de ser disponibilizado ao público em geral.
O acesso à informação tecnológica contida nesses arquivos permite criar produtos e posicionar o Brasil como líder global, gerando riqueza e melhorando a qualidade de vida da população, de acordo com Julio César Castelo Branco Reis Moreira, presidente do Inpi.
“Esse projeto nasceu com a motivação de preservar a história do Brasil, garantindo a identidade do povo brasileiro. As patentes representam informações tecnológicas valiosas.”
As caixas que continham esses documentos, datados de 1895 a 1929, foram doadas por uma empresa privada em 2020 e, no ano seguinte, o Inpi deu início à digitalização do material. Foi quando os servidores se depararam com curiosidades como as patentes de inventores conhecidos.
Um deles, Henry Ford (1863-1947), reconhecido por consolidar a linha de montagem para a fabricação de carros, tem quatro patentes registradas no país —em 1913, 1921 (duas) e 1922.
“Ele era de uma família de fazendeiros e, dos pedidos localizados no Brasil, a maior parte está ligada a inventos relativos ao campo”, afirmou a servidora Flávia Romano Villa Verde, chefe da Divisão de Documentação Patentária do Inpi.
Nikola Tesla (1856-1943), uma das referências mundiais na história eletricidade e que ajudou a iluminar o mundo, patenteou no país, em 1910, uma máquina que por meio de líquidos proporcionava geração de energia mais eficiente.
Há registros também em nome de George Westinghouse (1846-1914), rival de Thomas Edison que formou uma parceria com Tesla e comprou seus registros, incluindo a de corrente alternada (distribuição de energia elétrica em larga escala, que usamos até hoje).
Outra curiosidade é que o Inpi encontrou a assinatura de 11 presidentes civis em cartas-patentes desse período.
Flávia explicou que, inicialmente, a prática de assinar as patentes cabia exclusivamente a presidentes e ministros, e o invento só teria reconhecimento com a aprovação dessas autoridades. O próprio Inpi, órgão responsável por esses registros hoje, só surgiu em 1970.
Essas múltiplas assinaturas proporcionam um valor histórico significativo, segundo Flávia, uma vez que permitem um mergulho na história da propriedade industrial no Brasil, mostrando como a tecnologia se desenvolveu, quem eram os inventores e como as necessidades e inovações eram moldadas na República Velha.
Antes desse período, o imperador brasileiro dom Pedro 2º (1825-1891) desempenhou um papel importante ao assinar patentes durante seu reinado, disse Flávia.
O monarca era um entusiasta da ciência e tinha interesse por avanços científicos e tecnológicos, segundo Paulo Rezzutti, autor do livro “D. Pedro 2º – A História Não Contada”.
“Esse interesse e apoio de dom Pedro 2º à ciência e aos cientistas, registrado em seu diário em 1862, foram evidenciados ao longo de seu reinado. Ele não apenas admirava essas mentes brilhantes, mas também colaborava com elas financeiramente, trazendo avanços científicos ao Brasil.”
Isso e o fato de o Brasil ser o quarto país do mundo, segundo o Inpi, a criar uma lei de proteção à propriedade intelectual (prática herdada quando o país ainda era colônia de Portugal), poderiam ter chamado a atenção de cientistas para protegerem seus inventos no país.
Porém, mais do que isso, o Brasil era visto como uma potência comercial, quando o capitalismo tomava forma no mundo, e isso atraiu investidores estrangeiros, segundo Leandro Malavota, professor da Academia da Propriedade Intelectual do Inpi.
“O sistema de patentes segue o princípio da territorialidade, em que os direitos exclusivos são válidos apenas no país onde a invenção é depositada. Para proteger um produto no Brasil, era necessário registrá-lo aqui. Isso indicava o interesse de inventores estrangeiros no mercado brasileiro.”
Portanto, não significava que a patente registrada no Brasil fosse original. O especialista explica que os cientistas tinham um custo alto para registrar e, por isso, o faziam apenas em nações de interesse comercial, por meio de procuradores.
Henry Ford, que usou vários procuradores, patenteou seus inventos no Brasil em um momento em que o país passava por um desenvolvimento tecnológico e de infraestrutura, incluindo a construção de estradas de rodagem, lembrou Rezzutti.
Outros cientistas que patentearam seus inventos no Brasil nesse período foram Guglielmo Marconi (um dos pioneiros do rádio), Glenn Curtiss (fundador da indústria aeronáutica dos EUA), conde Hilaire de Chardonnet (criador da seda artificial) e Henry Joseph Round (inventor do LED).
MARCO DA CIÊNCIA BRASILEIRA
A família do cientista Vital Brazil (1865–1950) sabia da existência da patente 9.596, atribuída ao fundador do Instituto Butantan e reconhecido mundialmente como referência na criação de soros antiofídicos.
O documento trata da “invenção de um novo processo para a fabricação de soros antipeçonhentos”, como anunciava texto do Diário Oficial da União de 10 de maio de 1917. Porém, eles nunca haviam tido acesso ao arquivo original. Até agora.
Érico Vital Brazil, neto do médico sanitarista e presidente da Casa de Vital Brazil, soube pela Folha desse achado. “Essa patente representou um marco na história da medicina e da ciência brasileira.”
Ele afirmou que seu avô dedicou mais de uma década à pesquisa antes de desenvolver sua inovadora abordagem para a produção de soros contra picadas de animais que produzem veneno. “Antes disso, não havia descrição detalhada dessa técnica. É como se ele falasse diretamente conosco daquela época.”
Vital Brazil doou a patente ao governo estadual para a aplicação gratuita na população. Esse gesto permitiu ao Butantan produzir soros mais eficazes.
“O trabalho dele teve impacto na melhoria da saúde pública no Brasil e no mundo. O envenenamento por animais peçonhentos era uma ameaça significativa à vida na época.”
Fonte: Folha de S. Paulo.