Outro dia, em uma conversa entre amigos, fui chamado de “intelectual” por alguém. Não sei se o adjetivo tinha a intenção de crítica ou elogio, mas, de qualquer maneira, foi um julgamento bastante equivocado, tendo em vista eu ser, no máximo, um artista. Um artista fracassado, é verdade, mas, ainda assim, um artista. E o artista é aquele criador que busca encontrar o seu lugar dentro do mundo que o cerca, sendo reconhecido como artista e interagindo com o público, seja ele ouvinte, leitor ou espectador.
O artista desenvolve o seu próprio estilo, mesmo sem querer, e veste uma espécie de capa negra desafiadora, incorporando cinicamente uma “persona”, e almejando (por mais pedante e ridícula que seja essa ânsia) um dia transformar o universo através da sua arte. Mesmo sem admitir, o artista busca uma forma de imortalidade, e, quem sabe, deixar um pedaço de si mesmo para a posteridade no bojo das suas loucas e incompreendidas atuações. Ao contrário do intelectual, o artista não sabe nada. O artista apenas sente e, a partir dessa sensação, produz a sua obra.
Entretanto, para atingir a sua meta, o artista precisa primeiro ser um artesão. Burilando o seu texto, a sua música, ou a sua interpretação sobre o palco, até cansar. Enquanto que o artista busca a fama, o artesão prefere o trabalho nas sombras. Um depende do outro, mas o artesão é o pai do artista, e creio que não seja possível ser artista sem ser primeiro artesão. Como se fosse o boxeador que desenvolve a sua técnica através dos treinos, aperfeiçoando a defesa, os golpes e o jogo de pernas, o artista deve praticar com humildade e perseverança, para, a partir daí, adicionar a sua dose natural de talento. Analisando o caso de Muhammad Ali, vemos um atleta que utilizou o elã a serviço da arte, tornando-se um genuíno campeão. O seu jogo de pernas era um espetáculo à parte, e Ali costumava dizer que ele “flanava sobre o ringue como uma borboleta”. No auge da sua forma física e técnica, ele flanava mesmo.
Nesse sentido, acredito que oficinas de criação literária podem ser um aliado do escritor. Um dos grandes méritos desse tipo de iniciativa, é que ela geralmente obriga o escritor a produzir, fazendo com que ele saia da sua zona de conforto ao entregar o seu conto, romance ou outro tipo qualquer de texto, dentro de um determinado prazo. Além de abrir os horizontes da sua mente, tendo que produzir sobre algum tema insólito sugerido em aula, o aluno que pratica adquire ritmo, e isso é fundamental para que ele desenvolva o seu estilo e a sua arte. A repetição leva ao êxito, e o exercício constante fatalmente levará o artista a um patamar superior, em que ele terá o fôlego e o músculo para concretizar as suas ardilosas composições. Colocar óleo no motor da inspiração é uma providência que o artista não pode negligenciar. E esse óleo é o suor que escorre em incontáveis horas de dedicação.
Mas e se o indivíduo não tiver talento, de que adiantarão os exercícios e os estudos? Mesmo o artista sem talento, desde que estimule a sua veia de artesão, poderá triunfar um dia. Por outro lado, é improvável que o escritor, o pianista, o pintor ou o ator triunfe única e exclusivamente a partir do seu talento, por maior que ele seja. A folha em branco é a academia do cérebro, e se o autor não se dedicar a ela com afinco ele corre o risco de que a sua cinzenta engrenagem enferruje.
Muitas vezes, na calada da noite, enquanto busca inutilmente desfazer o nó górdio das palavras e concretizar as suas ideias em forma de texto, o escritor se vê preso nas garras de um dilema. Seria ele um artista, ou apenas um dedicado artesão? Talvez ele seja, ainda e apenas, um artista em estado embrionário. Um artista que só alcançará a plenitude das suas forças e da sua beleza criadora se conseguir incorporar o lado prático do artesão às suas pretensões e devaneios sentimentais.