Até pouco tempo atrás, se um restaurante estrelado servisse um vinho produzido com alguma variedade de uva que não fosse europeia, ele poderia causar desconforto entre clientes exigentes. Mas, aos poucos, a coisa começa a mudar de figura.
A bebida feita com uvas de origem americana (como a niágara) ou híbridas (de cruzamentos com europeias) vem ganhando espaço e perdendo a pecha de produto inferior.
O movimento começou em grupos ligados a vinhos naturais e biodinâmicos e já chama a atenção de um mercado maior. Seus produtores contestam a ideia de que só uvas europeias —entre elas, cabernet sauvignon, sangiovese e tempranillo— é que são próprias para a produção de vinhos.
Isso foi até assunto da São Paulo International Wine Trade Fair, tradicional evento do setor, que aconteceu na semana passada na capital paulista.
Em países como Brasil, Estados Unidos e Japão, vinhos feitos de uvas originárias da América do Norte (como a bordô) ou de híbridas (como a Isabel) representam grandes fatias do mercado. A empresa Ideal Consulting estima que eles respondam por 58% de todo o consumo nacional.
Boa parte da má fama vem de descuidos cometidos por parte da indústria, que no fim do século passado começou a usar açúcar em excesso para disfarçar defeitos. “Isso quebrou o setor do vinho de mesa de qualidade”, afirma Acir Boroto, da vinícola Famiglia Boroto, na serra gaúcha.
Descendente de imigrantes italianos, ele conta que na sua família sempre se bebeu vinho de mesa seco. O açúcar não passa perto da sua produção, feita com uvas orgânicas e vinificada com baixa intervenção —o chamado vinho natural. Ele trabalha mais com vinhos de mesa porque crê ser mais difícil produzir a bebida à base de uvas europeias sem defensivos.
O estigma das variedades americanas também pode datar do início da colonização dos EUA, no século 17, quando ingleses descobriram espécies do gênero Vitis, ao qual também pertencem as uvas europeias Vitis vinifera. Algumas delas rendiam vinhos que não agradavam ao paladar europeu.
O descaso foi também uma forma de salvaguardar o produto dos colonizadores, afirma a sommelier Gabriela Monteleone, que, no seu projeto Tão longe, Tão Perto, trabalha vinhos de pequenos produtores nacionais de uvas europeias, de mesa e híbridas.
Existe, sim, um aroma característico das uvas americanas, diz Gustavo Camargo Borges, produtor da BellaQuinta. Por que esse aroma está presente nas americanas e não nas europeias? “Há um grupo de substâncias nas americanas que não há nas viníferas”, diz o pesquisador da Embrapa Mauro Celso Zanus. Isso não quer dizer que elas não possam ser vinificadas.
“A própria Organização Internacional da Vinha e do Vinho deixou de definir como vinho apenas aquele produzido a partir da Vitis vinifera.” Há um bom motivo para isso. Muitos vinhedos de uvas europeias podem não sobreviver às mudanças climáticas ou, pelo menos, não com as mesmas características.
No Brasil, a Embrapa já criou uma série de uvas híbridas para a produção de vinhos, como a BRS Lorena, a BRS Margot e a BRS Bibiana. “O que buscamos é resistência, produtividade e adaptação ao clima”, diz o pesquisador Marcos Botton. As americanas costumam ser mais resistentes a doenças causadas por fungos e mais adaptadas ao clima. A ciência busca combinar isso às características das Vitis viniferas, diz ele.
Há híbridas que surgiram espontaneamente na natureza. Acredita-se que esse seja o caso da Isabel, mistura entre cepas americanas e europeias, muito empregada por imigrantes italianos que se estabeleceram no Sul. “Minha infância foi em meio aos parreirais desta variedade”, diz o engenheiro agrônomo Arnaldo Argenta, proprietário da Valparaíso Vinhos e Vinhedos, em Barão, na serra gaúcha.
O fato de uvas americanas estarem na base da história da produção brasileira foi o que levou a nutricionista Lis Cereja, sócia da Enoteca Saint VinSaint, em São Paulo, e criadora da feira de vinhos Naturebas, a buscar vinhos dessas uvas.
“O movimento de vinhos naturais também passa pelo resgate de uvas, modos e feitios do passado”, diz a empresária, que serve rótulos da bebida em seu restaurante, no bairro de Vila Nova Conceição.
Para a sommelière Patrícia Brentzel, do canal Beba Bem em Casa, que faz curadoria de vinhos, o consumidor que aceita melhor a versão atual do vinho de mesa é o que tem memória afetiva ligada a ele. “A pessoa diz: lembra o vinho do meu avô’”, conta. Por muito tempo, Brentzel diz que teve preconceito. “Comecei a prestar atenção quando surgiu o movimento de vinhos naturais. Nas feiras, provei e entendi que pode ser muito gostoso, especialmente para o consumo rápido e despretensioso.”
Fonte: Folha de São Paulo