Em algum momento em 1993 ou 1994, anos em que o Skank lançou o primeiro e o segundo disco do grupo, o vocalista Samuel Rosa estava jogando uma partida de futebol no Paraná quando sentiu que fazer parte de uma banda poderia ser uma carreira. “Lembro de comentar ‘essa brincadeira está ficando gostosa, né?’. ‘Imagina se a gente durar uns dez anos?’”, ele conta.
Neste fim de semana, o Skank passa por São Paulo com sua turnê de despedida, que já reuniu mais de meio milhão de pessoas. É o fim de uma trajetória de mais de 30 anos de um dos grupos mais bem-sucedidos da música nacional, com uma lista de sucessos tão extensa quanto seu tempo em atividade, e um dos nomes fundamentais no processo de abrasileiramento do rock nos anos 1990.
A decisão de parar, diz Rosa, serve para libertar os integrantes de uma agenda até hoje cheia, mas também —e paradoxalmente— para proteger o legado do Skank. “Vamos acabar, parar a banda, dar um tempo e se encontrar mais tarde ou seguir passando pelo ‘constrangimento’ de —acho que é um pouco exagerado, mas— virar mero cover de si mesmo?”
Segundo o vocalista, o auge criativo do Skank ficou no passado —ainda que ele tenha durado bastante. É difícil imaginar um artista, solo ou em conjunto, que tenha emplacado sucessos ao longo de tanto tempo —de “Te Ver”, de 1994, a “Esquecimento”, de 2014, passando por “Vou Deixar”, de 2004, a banda nunca deixou de ter um single em alta rotação no rádio e nos shows.
Mas, na última década, lançou só um álbum de inéditas, “Velocia”, nove anos atrás. “Conseguimos fazer discos criativos durante duas décadas, e temos três de existência. Acho que foi até demais”, diz Rosa. “O fracasso às vezes está em continuar. Muitas vezes a longevidade não é sinônimo de êxito. É o contrário. Até em casamento, ela pode ser sinônimo de acomodação, de conformismo. E eu acho que o Skank parando, ou acabando, ele se preserva de não virar uma banda velha requentada, que está ali pela comodidade.”
Na opinião do tecladista Henrique Portugal, a maior prova do alcance e da perenidade do sucesso do Skank é a turnê de despedida, que passou por 96 cidades desde dezembro de 2021, para além das capitais e fora do eixo. O último show está marcado para o estádio do Mineirão, em Belo Horizonte. “O que estou sentindo? Um misto de alegria e tristeza. Mas é intenso.”
Mas, se hoje o Skank é conhecido do Oiapoque ao Chuí, no começo dos anos 1990 as gravadoras não faziam ideia que o quarteto mineiro chegaria tão longe. O rock tinha vivido seu auge comercial nos anos 1980, com a geração de Legião Urbana, RPM e Titãs, entre outros, mas vinha perdendo força para outros gêneros em ascensão, do axé ao pagode e ao sertanejo.
“Logo de cara, a gente já vendeu um disco de ouro”, diz Rosa. “Então, havia aquele ceticismo todo, alegando que o rock havia sido a bola da vez nos anos 1980, que agora era a vez do sertanejo de Leandro & Leonardo. O Skank, goste ou não, sendo ou não criativo, bate o pé e diz que o rock vai continuar sendo viável comercialmente, arrastando multidões para ginásios e festivais.”
De fato, nos primeiros anos da década de 1990, várias movimentações aconteciam ao redor do Brasil. Bandas de rock que viriam a fazer enorme sucesso estavam prestes a surgir ou em estágios embrionários, do Planet Hemp no Rio de Janeiro à Nação Zumbi no Recife, passando pelos Raimundos em Brasília, entre outros.
Formado em 1991, o Skank lançou seu disco de estreia há 30 anos, sendo uma das bandas que puxaram o bonde dessa geração, tanto em termos de popularidade quanto em estética. Os mineiros seguiram o caminho aberto pelos Paralamas do Sucesso que, das bandas de rock da geração anterior, era a que mais havia se aproximado de uma sonoridade brasileira —o álbum “Selvagem?”, de 1986, é um marco nesse sentido.
Se o que imperava nos anos 1980 era a frieza do pós-punk e da new wave, o Skank chegava tendo Jorge Ben Jor como sua maior influência e mirando nos desdobramentos do reggae que pipocavam na Jamaica. Na visão de Samuel Rosa, a geração anterior do rock chegou para quebrar com a sisudez riponga da MPB dos anos 1970, num movimento artístico natural de negar a estética vigente em determinado período.
“A gente ria um pouco das ombreiras do Paulo Ricardo, querendo ser o Duran Duran brasileiro”, ele diz. “A gente pensou ‘pode ser mais brasileiro, é mais legal’. Queríamos quebrar aquela coisa pomposa, meio Joy Division, da Legião Urbana. Era, ‘vamos cantar um calango aqui, o máximo que a gente vai imitar são os blacks da Jamaica’.”
O calango, que dá nome ao segundo e um dos mais importantes álbuns do Skank, de 1994, é o que Rosa chama de “repente de Minas”, estilo incorporado pela banda nos primeiros anos. É uma abordagem que foi se refletindo em todo o rock brasileira da época —os Raimundos misturaram hardcore com forró, a Nação Zumbi uniu guitarras distorcidas e maracatu, o Planet Hemp juntava punk e rap com samba e por aí vai.
Sempre alinhado ao pop rock, nessa primeira fase o Skank era calango, mas também dancehall e ska, exalava latinidade e até fazia, mas não se limitava, às letras sobre romances juvenis. Em “Calango”, “Esmola”, sobre desigualdade social, convivia com a apaixonada “Te Ver”, enquanto “Jackie Tequila” trazia vocais no estilo do toasting jamaicano para pintar um cenário tropical cubista ecoando Gilberto Gil.
Era uma época pós-movimento das Caras Pintadas e o governo Collor, em que o Brasil queria olhar para si mesmo. “Aquela música [‘Esmola’] foi o hino dos Caras Pintadas em Belo Horizonte. Os garotos de lá estavam cansados daquela moda dos anos 1980 de ficar pagando pau para carioca e paulista”, diz Rosa. “Começou a dizer ‘não, vamos gostar das bandas daqui’.”
No álbum “Samba Poconé”, de 1996, a banda fez o hino do esporte mais popular do país, “Uma Partida de Futebol”, e alcançou sucesso internacional exaltando a mulher brasileira em “Garota Nacional”. Também canta com Manu Chao sobre reforma agrária em “Sem Terra” e sobre racismo em “Los Pretos”, tudo isso sem deixar a veia pop moderna com a cara das FMs, como em “Tão Seu”.
Rosa se lembra de ter ouvido de um executivo de gravadora que, apesar de ter um show redondo e gostar de trabalhar, não tinha um hit no rádio porque suas letras eram muito adultas e não conversavam como os jovens.
“Ele falou isso sobre o ‘Calango’, que depois veio a ter cinco hits”, diz. “Eu falei ‘você quer que eu trate o jovem brasileiro como imbecil?’ ‘Que eu encha minhas músicas de gírias e me faça parecer um adolescente?’ A gente se negou a fazer isso.”
Nessa época, o Skank chegou a ter dois álbuns, “Calango” e “Samba Poconé”, com mais de 1 milhão de cópias vendidas num período inferior a um ano. Henrique Portugal diz que o fim dos anos 1990 marca também o começo de uma nova fase, a do pop rock mais melódico, com mais violões e menos metais.
O álbum “Siderado”, de 1998, foi exemplar nessa transição —enquanto “Saideira”, depois regravada pelo guitarrista Carlos Santana, lembrava o passado, “Resposta” apontava o futuro. Essa segunda, aliás, foi a faixa que mostrou o caminho do Skank que reinaria nos anos 2000.
“Teve uma certa resistência, tipo, isso é o Skank mesmo?”, diz Portugal. “Mudou bastante a característica sonora. ‘Resposta’ é uma música que tem uma cara de banda inglesa, né? Com melodias, estruturas, cordas, esse tipo de coisa. Mas o que acho legal é que nosso público acabou se acostumando com isso.”
Dali em diante, o Skank foi transformando seu pop rock, lembrando o Clube da Esquina em “Dois Rios”, resvalando na bossa nova em “Balada do Amor Inabalável”, abraçando um rock mais direto em “Vou Deixar” ou o folk em “Sutilmente”. É difícil achar um álbum da banda que não tenha emplacado ao menos um sucesso.
De certa forma, a inquietação criativa que faz o quarteto pendurar as palhetas e baquetas é a mesma que os fez querer olhar para Jorge Ben Jor em vez de Joy Division —ou soar melódica no auge da euforia do balanço latino-jamaicano. Tanto quanto um esgotamento, mais da própria banda do que do público, é um ato de coragem coerente com a postura do Skank ao longo de três décadas.
“Acima de tudo, não acho que estou exagerando em dizer que o Skank recoloca o pop rock nos trilhos ali no início dos anos 1990”, diz o vocalista. “Antes da gente, nos anos 1990, não teve ninguém com o tamanho que a gente já conseguiu ali de cara. Desculpa se estou sendo pretensioso, mas aí eu vou ser.”
Fonte: Folha Ilustrada