A vida é feita de momentos. Alguns desses momentos extrapolam a esfera banal da existência, e se transformam em marcos, instantes de rara importância, capazes de alterar os rumos da História e da Humanidade. A Queda da Bastilha, a passagem do Mar Vermelho, a descoberta da Roda. Façanhas do homem, de fabuloso impacto, eternizadas nos livros e no inconsciente coletivo através dos anos e das décadas.

No âmbito esportivo, da mesma forma existem os grandes jogos, as grandes marcas e as jogadas inesquecíveis. Entretanto, quando o lance crucial não é registrado, através de fotos ou filmagens, o que resta é apenas a lenda, passada de boca em boca, como se fosse a versão adulta da brincadeira do telefone sem fio. Pode-se dizer de tudo sobre as fabulosas efemérides do esporte, mas, apenas quem esteve no estádio ou na arena onde aconteceu o improvável, é que pode testemunhar, com autoridade e razão.

Onde estarão os homens, mulheres e crianças que assistiram, desde a arquibancada do Estádio da Rua Javari, o famoso gol de Pelé, quando ele encobriu, de forma magistral, três defensores do Juventus antes de empurrar o couro para o fundo das redes?  Estamos em 1959, e Pelé acaba de deixar para a posteridade uma das suas pérolas preciosas, considerada pelo próprio “Rei” como um dos seus tentos mais bonitos.

Bem que o cineasta Aníbal Massaini tentou recriar, através de computação gráfica, o instante de puro funambulismo, em que Pelé aplicou um lençol em Homero, outro em Clóvis, e, para espanto da multidão, enganou o goleiro Mão de Onça com um novo lençol, antes de concluir para a meta desguarnecida do time da Mooca. De qualquer modo, toda e qualquer hipótese, mesmo que ela se mantenha fiel aos relatos jornalísticos da época, parece incapaz de satisfazer a curiosidade e a ânsia pela imagem em si, por uma visão real e insofismável do lance. Talvez o único caminho para apaziguar essa dúvida cruel seja aceitar o mito, a lenda, o disse-me-disse, como sendo a verdade.

Em 1961, outra joia rara de Pelé deixou de ser capturada pela câmara fria da televisão. Vale dizer que essa tecnologia apenas engatinhava na época, especialmente no Brasil. E talvez o lance, como se fosse uma cena de Hitchcock, merecesse o suporte preto e branco da tela grande do cinema. De qualquer maneira, o chamado vídeo-tape seria suficiente para que pudéssemos desfrutar da genialidade do craque mineiro sem problemas, quem sabe através de um simples clique, na hora e no local que quiséssemos.

O palco dessa façanha foi o relvado do Maracanã. Para realizar o seu famoso “Gol de Placa”, Pelé veio driblando desde o meio campo, fazendo uma espécie de “slalom” entre os jogadores do Fluminense. Valdo, Edmilson, Clóvis, Altair, Pinheiro e Jair Marinho foram iludidos de alguma maneira, até Pelé ficar frente a frente com Castilho. Expectativa e mistério pairam no ar. Com frieza, Pelé desloca Castilho. Dessa vez, o Boris Karloff das traves havia encontrado um rival à sua altura.  Gelo nas tribunas. O Santos é um visitante indesejado, mas, mesmo com a derrota sofrida, o torcedor carioca pôde regozijar-se com o golaço do nosso maior craque.

Existem algumas fotos do lance em que é possível ver a chusma dos atônitos defensores do Fluminense perseguindo Pelé, um deles caído no chão, enquanto Pelé, com a perna tesa e o olhar de matador, desfere o golpe fatal. Ao fundo, as arquibancadas vazias do Maracanã. Poucas testemunhas assistiram, in loco, o tremendo gol. A ideia de produzir uma placa para capturar a aura invisível do lance, foi do jornalista Joelmir Beting.

Alguns anos se passaram, até que, em 1970, todo o esplendor físico, técnico e artístico de Pelé foi capturado e assistido ao vivo (e até mesmo a cores) por milhões ao redor do planeta. Uma penca de dribles, passes e gols memoráveis foi concebida pelo Rei, durante a Copa do Mundo do México. Instantes únicos, dignos de repousarem no interior de uma caixinha de veludo.

Como esquecer o duelo entre Pelé e Mazurkiewicz, quando o nosso camisa dez aplicou uma finta desconcertante sobre o arqueiro uruguaio?   A esfera acabou saindo, caprichosamente, pela linha de fundo.  Mesmo que a jogada não tenha redundado em gol, Pelé foi ovacionado pelo mundo do futebol, sempre ávido por lampejos de criatividade e coragem. E o melhor de tudo é que são imagens disponíveis facilmente nos sítios digitais da internet.

Dizem que aquilo que os olhos não veem o coração não sente. Como é possível para nós saber o que aconteceu em 1972, durante o jogo entre River Plate e Independiente, pelo campeonato Nacional argentino? Como, sem ter visto, podemos sentir com intensidade algo de belo e prazeroso? Nós que não estávamos lá podemos apenas, em nossa imaginação, supor o que fez Beto Alonso. Uma das bandeiras do River através dos tempos, Alonso era ainda um garoto, quando “copiou” a jogada de Pelé em seu duelo contra Mazurkiewicz.

A diferença é que a conclusão de Alonso foi certeira, fazendo com que ele entrasse para o folclore futebolístico como alguém que fez o gol que nem mesmo Pelé conseguiu fazer. Alonso, inclusive, recebeu o apelido de “Pelé Branco” de um jornalista argentino. Se fizermos um jogo de espelhos, podemos dizer que o papel de Mazurkiewicz no lance coube a Santoro. Todo um personagem, ídolo da fanática torcida do Independiente, Santoro não teve a mesma sorte que o seu colega uruguaio, sendo obrigado a buscar a bola aninhada no fundo das redes da sua meta.

Diz a lenda que nem mesmo Beto Alonso conseguiu rever a sua jogada memorável. Imortalizada através de relatos de quem a narrou pelo rádio, ou escreveu a crônica do jogo, a façanha de Alonso permanece envolta nas brumas do mistério. Embora exista o registro fílmico de outros lances e até mesmo gols daquela partida, a obra-prima de Alonso, curiosamente, não pôde ser recuperada.

Um gesto singelo e magnífico, que vive apenas nas mentes e corações de quem foi sua testemunha ocular. Indivíduos que caminham pelas ruas como cofres ambulantes, depositários da lembrança, cada dia mais vaga, de um momento de fantasia e fascinação. Pequenos grãos de areia, escorrendo pela ampulheta implacável do tempo, até que o seu fluxo cesse por completo.

 

lucio.saretta

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