No verão, o Litoral Norte do Rio Grande do Sul não fala apenas português e o eventual castelhano. Um ouvido atento ao comércio local identifica também mandarim e francês – idiomas dos imigrantes que vendem roupas e acessórios e, inclusive, chegam a contratar mão de obra brasileira.

Pela barreira de idiomas, nomes brasileiros costumam ser adotados e a comunicação, por vezes, depende mais de expressões e simpatia do que da gramática. Os chineses de Capão da Canoa moram em São Paulo e vêm para o Estado no verão. Os de Tramandaí ficam na cidade o ano inteiro. Senegaleses, por sua vez, mudam-se apenas durante o veraneio e focam sua atuação como ambulantes à beira-mar, atendendo os banhistas. Neste caso, os francófonos saem de São Paulo ou do interior do Rio Grande do Sul em busca do agito nas férias dos gaúchos. Venezuelanos, apesar do aumento do fluxo migratório nos últimos meses no Estado, não foram identificados em peso nas praias gaúchas.

Roupas e acessórios são os principais artigos de venda dos comerciantes estrangeiros. Há réplicas de marcas famosas, como Adidas, Nike e Louis Vuitton, e de camisas de clubes de futebol do Brasil e do mundo. Há também produtos legítimos, como blusas africanas, roupas artesanais, colares e pulseiras.

12 horas ao sol sem garantia de retorno
Há seis anos, o senegalês Davi, como gosta de ser chamado, trabalha como vendedor de roupas em Passo Fundo, mas, na alta temporada, circula pelas areias de Capão. As vendas são instáveis, mas ainda é melhor do que a situação no país natal. Há três anos, Davi não vê a esposa e os três filhos.

— Várias vezes, andei 12 horas no dia e não vendi um centavo. Mas tem dias que vendo R$ 500. No Senegal, não tem trabalho. Aqui, posso trabalhar e mandar dinheiro para minha família. Meu sonho é visitar eles — afirma o vendedor, que veste camisa da Seleção Brasileira e fala francês, inglês, português e espanhol.


Awa Faed aluga um espaço em um shopping de Tramandaí durante o verão (Foto: Andréa Graiz / Agencia RBS)

Longe das areias, Awa Faed aluga um espaço em um shopping de Tramandaí durante o verão. Ela veio de Mbour, município de 230 mil habitantes na costa do Senegal, e mora no Brasil há nove anos – já viveu em Caxias do Sul e hoje reside em Passo Fundo. Em Tramandaí, ela é famosa: vários lojistas orientaram a reportagem a procurar uma “mulher negra, alta e sorridente, muito bonita”. Em sua banca, ela vende roupas comuns ou com estampas africanas, além de acessórios. No verão, mal vê a areia da praia.
— Só passeio no inverno. No verão, trabalho o tempo todo — diz, abrindo um sorriso no rosto, Awa, que emprega duas brasileiras: uma costureira e sua filha, vendedora.

Vendas ocorrem de dezembro ao Carnaval
O senegalês Bathie Gueye, 50 anos, residente em Passo Fundo há nove anos, foi abordado por GaúchaZH nas ruas de Tramandaí ao fim da tarde, quando já dera o expediente por encerrado. Ele arrastava um carrinho com centenas de roupas, colares, pulseiras e bolas, uma rotina repetida de dezembro ao Carnaval. No alto do veículo de madeira, tremulavam as bandeiras do Senegal e do Rio Grande do Sul. Ele conhecia a comerciante Awa e o marido. Com português fluente, revela de forma bem-humorada a influência do tempo sobre os negócios:

— A gente reza para não chover. Quando chove, não tem trabalho e eu descanso. Mas, para a Awa, ela trabalha em dobro, porque as pessoas vão para o shopping. Os senegaleses vivem que nem irmãos. Se é do Senegal, é irmão.


O senegalês Bathie Gueye leva um um carrinho com centenas de roupas, colares, pulseiras e bolas (Foto:
Andréa Graiz / Agencia RBS)

Fechados, chineses optam por lojas em shoppings
Em Tramandaí, Capão da Canoa e Torres, é fácil encontrar uma loja gerida por um chinês dentro de um shopping. Em geral, eles vêm de Qing Tian, condado do sul da China. Há vários familiares e conhecidos da região nas praias gaúchas, mas a comunidade é extremamente fechada. Até algumas semanas atrás, uma loja administrada por chineses em Tramandaí, anunciava: “Precise-se de trabalhador, mora perto de loja”. Com a reportagem, muitos fingem não falar português.

Sem se identificar, um jovem chinês resume sua relação com a beira-mar:
— Não gosto de ir para o mar. É muito quente — revela.

Em Capão da Canoa, Alex, de 30 anos, aluga um espaço em um dos shoppings para vender artigos até cerca de 23h, em uma jornada de pelo menos 12 horas. Ele não estava satisfeito com as vendas neste ano.

— Esse ano está ruim. Acho que as pessoas estão com menos dinheiro — opina o chinês, já querendo encerrar a conversa.

Lucas, 35 anos, tem uma loja repleta de tênis, camisetas, camisas e bolsas no Centro de Capão da Canoa. A maioria réplica de marcas famosas. Camisas polo da marca Lacoste, por exemplo, são vendidas a R$ 65. Modelos semelhantes não saem por menos de R$ 280 no site oficial da marca.

—  Tá fraca a venda. Esse ano está pior do que o ano passado — reclamava, com as poucas palavras que sabia de português.

Muitos chineses empregam brasileiros em suas lojas. Larissa Conti, 19 anos, trabalhou em 2016 como vendedora e conta que as lojas de orientais são as que mais faturam, muito pela compra em atacado em grande quantidade, o que reduz o preço final.

— Eles acordam e trabalham, acordam e trabalham. Minha chefe estudava português pelo celular. Colocava a palavra no tradutor do Google, ouvia a pronúncia e me perguntava o que significava — diz a jovem.

Comerciantes locais reclamam do que chamam de “concorrência desleal”. O secretário-executivo da Associação Comercial e Industrial de Capão da Canoa, Mário Santos da Cruz, diz que muitos brasileiros perdem vendas pela oferta de produtos ilegais dos estrangeiros e que a entidade já tentou dificultar a entrada de gringos no veraneio, sem sucesso.

— Tentamos legalizar eles com alvarás, mas não foi bem aceito por alguns. Perdemos cerca de 7% dos clientes para eles. São produtos de marcas falsificadas e atraem a população — conta Cruz.

Em Tramandaí, o secretário da Indústria e Comércio, Gilberto de Matos da Rosa, diz que os chineses têm alvará e comercializam de forma legal. Os senegaleses ambulantes, no entanto, promovem venda de produtos falsificados e sem nota fiscal – podem, portanto, ter a mercadoria apreendida em fiscalização.

— A gente acredita, inclusive, que os senegaleses daqui se abastecem com produtos falsificados de chineses que vivem em São Paulo — afirma o secretário, resumindo uma conexão inusitada entre as duas nacionalidades.

Fonte: ZH/ Foto: Félix Zucco / Agencia RBS